Trabalhar até cair: o legado invisível do burnout que o século XX nos deixou
Vivemos numa era em que o cansaço se tornou um símbolo de valor. Trabalhar até à exaustão é visto como virtude, e descansar, como fraqueza. Mas esta epidemia silenciosa não começou agora.
A exaustão moderna não nasceu com os ecrãs nem com o teletrabalho. Nasceu nas fábricas, entre sirenes e relógios de ponto, e continua a pulsar em cada notificação que nos impede de parar. O burnout é o eco contemporâneo de um passado que nunca chegou a curar-se: o século XX, quando o corpo humano se tornou uma extensão da máquina e o valor da pessoa passou a medir-se pela sua produtividade.
Hoje, o descanso virou culpa e o cansaço virou estatuto. Dizemos com orgulho que “não temos tempo”, como se a pressa fosse sinónimo de importância. A produtividade transformou-se num vício socialmente aceite, e o burnout, a sua consequência mais lógica, tornou-se um colapso silencioso que fingimos não ver.
Mas este mal-estar não é novo. O burnout do século XXI é apenas a versão digital de uma história antiga. No século XX, as fábricas ditavam o ritmo da vida: o homem era o operário de uma engrenagem que não podia parar. A alienação que Karl Marx descreveu no século XIX ganhou forma física e emocional como corpos exaustos, mentes repetitivas, identidades moldadas pelo trabalho.
Naquela altura chamava-se “neurastenia”, “colapso nervoso” ou simplesmente “esgotamento”. Hoje chamamos burnout, um nome moderno para um velho sintoma: a falencia de um sistema que exige mais do que o humano pode dar. Com o pós-guerra e o crescimento económico, o mundo entrou na era da produtividade. O trabalho deixou de ser apenas sustento e passou a ser propósito, identidade, quase religião. As fábricas foram substituídas por escritórios, os operários por executivos, as máquinas por computadores. Mas o ritmo manteve-se com pressa, metas, desempenho, avaliação, exaustão.
A cultura da produtividade prometia progresso, mas entregou culpa, culpa por não render o suficiente, culpa por não ser o melhor, culpa por descansar. Foi assim que o século XX nos ensinou a viver a confundir valor com utilidade e existência com eficiência.
Hoje, já não somos forçados por cronómetros de fábrica, mas por algoritmos. Vivemos conectados 24 horas, com ecrãs que nos lembram que o mundo nunca dorme e que talvez também não devêssemos dormir. O trabalhador moderno é a soma do operário e do executivo que produz sem parar e pensa enquanto produz. É o corpo cansado da fábrica com a mente sobrecarregada do escritório. E há algo de profundamente simbólico nesta herança O Burnout como o novo “colapso nervoso” do nosso tempo. A diferença é que agora temos Wi-Fi.
Na década de 1970, o psicólogo Herbert Freudenberger utilizou pela primeira vez o termo burnout para descrever o esgotamento de profissionais, pessoas que davam tanto de si que acabavam a arder por dentro. Desde então, a psicologia tem mostrado o que a cultura insiste em ignorar a exaustão não é sinal de fraqueza, é um sintoma de sobrecarga.
O DSM-5, manual de referência para diagnóstico em psicologia clínica, reconhece o burnout como uma síndrome associada ao stress ocupacional, ainda que não o classifique como perturbação mental. Mas quem sofre sabe que o burnout invade o corpo, mina a motivação e destrói a capacidade de sentir prazer. É o ponto em que o “viver para trabalhar” se transforma em “trabalhar para não sentir”.
Site do Observador: https://observador.pt/opiniao/trabalhar-ate-cair-o-legado-invisivel-do-burnout-que-o-seculo-xx-nos-deixou/