O Futuro Também Tem Rugas

O envelhecimento não é um fardo inevitável. Prevenção, convívio e políticas públicas podem transformar rugas em dignidade, saúde e esperança.

Portugal está a envelhecer a olhos vistos — e esse é um dos maiores desafios sociais do nosso tempo. Hoje, mais de 23% da população já tem 65 anos ou mais e, em 2050, esse número poderá ultrapassar os 33%. Não falamos de projeções distantes, mas de um presente que exige respostas urgentes: como garantir dignidade, cuidado e inclusão a uma geração inteira que cresce em número, mas que tantas vezes se sente invisível?

Vivemos num país onde a esperança de vida disparou. Em apenas meio século, a média de vida dos portugueses aumentou mais de 15 anos, situando-se hoje nos 82 anos para as mulheres e 76 para os homens. Esta conquista da ciência e das políticas de saúde transformou Portugal num dos países mais envelhecidos da Europa, e aquilo que antes parecia uma previsão futura é já a realidade quotidiana. Mas se envelhecer é, para muitos, um privilégio, para outros torna-se sinónimo de perdas, limitações ou isolamento. Cada ruga guarda uma história de resiliência, cada cabelo branco é memória de batalhas vencidas, mas demasiadas vezes a velhice traduz-se em invisibilidade e estigma. Não surpreende que mais de 40% dos nossos idosos confessem sentir-se tratados como um peso para a sociedade.

A solidão é talvez o inimigo mais silencioso do envelhecimento. Em Portugal, cerca de 19% dos idosos vivem sozinhos e afastados das suas comunidades. Os dados internacionais são claros: o isolamento aumenta em 50% o risco de desenvolver demência e em 30% o risco de morte prematura. Não falamos apenas de vidas em quartos fechados, mas de dias sem partilha, sem propósito e sem alegria, em que a ausência de convívio acelera o declínio físico e mental. Uma sociedade que permite este abandono não só compromete os seus mais velhos como mina o seu próprio futuro.

A realidade das doenças neurológicas expõe de forma ainda mais dura o peso do fenómeno. Mais de 200 mil portugueses vivem com demência e a maioria recebe o diagnóstico demasiado tarde. E aqui cabe uma pergunta que não podemos continuar a varrer para debaixo do tapete: porque é que em pleno século XXI ainda não existe uma medicação capaz de travar ou fazer regredir estas doenças? O Alzheimer continua sem cura e os fármacos disponíveis apenas aliviam sintomas sem impedir o declínio inevitável. Esta falha científica impõe sofrimento a famílias inteiras, mergulhadas num ciclo lento e doloroso de perda. Mas se a medicina ainda não oferece respostas, a política não pode ficar de braços cruzados. A ausência de estratégias nacionais eficazes agrava ainda mais o problema, transformando cada diagnóstico tardio numa oportunidade desperdiçada e cada história de abandono numa falha coletiva.

Ao lado do idoso fragilizado, há outro protagonista que quase nunca é lembrado: o cuidador. Muitas vezes familiares sem qualquer formação, enfrentam o peso de uma responsabilidade gigantesca — gerir rotinas, lidar com perdas progressivas e suportar a carga emocional de ver alguém que amam desaparecer aos poucos. Sem apoios f inanceiros, sociais ou psicológicos, estes cuidadores vivem frequentemente isolados, sobrecarregados e exaustos, sendo comuns situações de depressão ou burnout. É urgente reconhecer este impacto invisível, porque cuidar não pode significar adoecer. Iniciativas como as oficinas da Casa d’Avó, que oferecem workshops a cuidadores formais e informais sobre como acompanhar a evolução da doença sem se esquecerem de si próprios, mostram que o apoio e a partilha de estratégias práticas são possíveis e transformadores.

Apesar disso, nem tudo se resume a estatísticas ou diagnósticos. Está provado que o cérebro pode envelhecer melhor quando é estimulado com afeto, convívio e atividade. Contudo, apenas 36% dos idosos em Portugal participam regularmente em atividades de grupo ou lazer, quando aqueles que o fazem revelam níveis mais elevados de bemestar e saúde psicológica. Caminhadas em grupo, aulas de dança adaptada, clubes de leitura ou voluntariado intergeracional são mais do que simples passatempos: são verdadeiros escudos contra o declínio, estratégias de prevenção que custam pouco e valem muito. Projetos comunitários mostram exatamente o que está em falta: redes de proximidade, partilha de saberes, espaços de encontro entre gerações e oportunidades de participação ativa.

O envelhecimento saudável não pode ser privilégio de alguns, mas um pacto coletivo de dignidade, esperança e oportunidade. A forma como tratamos os nossos idosos é o retrato da sociedade que somos e da que queremos deixar como legado. Se continuarmos a encarar o envelhecer como um fardo, corremos o risco de transformar este desafio num problema insolúvel. Mas se tivermos a coragem de colocar o envelhecimento no centro da agenda política e social — com investimento, políticas de prevenção, redes de apoio e combate decidido ao isolamento — poderemos transformar esta realidade numa oportunidade coletiva.

Viver mais não basta. É preciso viver melhor, com autonomia, afeto e participação. O futuro também tem rugas e a forma como as cuidarmos dirá, em última análise, o que somos enquanto nação: uma sociedade que abandona os seus mais velhos à invisibilidade ou uma comunidade capaz de reconhecer nas rugas a marca da dignidade, da sabedoria e da esperança.

Site do Observador: https://observador.pt/opiniao/o-futuro-tambem-tem-rugas/

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